sábado, 3 de agosto de 2013

Bom Dia, Curitiba

1.
Há trajetos que podem ser percorridos tanto a pé quanto dentro de um ônibus, mas quando se tem compromisso pela manhã, uma locomoção motorizada ajuda – qualquer minuto economizado vale por dois. Sete da manhã, a cidade ainda acordando, eu esperava um ônibus no ponto, na Avenida Presidente Kennedy, a pé iria demorar mais para chegar ao terminal. Embarco em um verde, passo pela catraca, fiquei olhando as ruas, que passavam rapidamente diante de meus olhos, sem que eu pudesse me ater a detalhes.

As miudezas escaparam, mas algo que vi em um cruzamento entre uma rua marginal e a avenida pela qual o ônibus faz seu trajeto não. Um carro preto, perto de uma esquina onde fica uma loja de sapatos, estava com o farol direito quebrado, o capô levemente amassado; próximo a ele, um carro amarelo, faróis traseiros destruídos, foi o que pude notar, além de um tapete formado por cacos de vidro, visto por dois sujeitos, parados em uma divisória entre as faixas da via rápida, aparentemente os donos dos veículos. Antes que pudesse olhar com mais atenção para esta cena, o ônibus continuou seu caminho. Bom dia, Curitiba.

2.
Entrei em um biarticulado, meio de transporte típico daqui de Curitiba. Plenas sete e dez da manhã, os ônibus parecem latas de sardinhas humanas sobre rodas. As portas se fecharam após minha entrada, andei dois passos a frente, continuei esmagado, se a porta atrás de mim fosse aberta seria despejado. Mas demoraria bons 30 minutos para acontecer, podia aproveitar o trajeto confortavelmente apertado.

Eu estava com um livro em mãos, além de uma mochila pendurada no ombro direito, esta suspensa a minha frente, aquele fechado enquanto eu procurava um microscópico espaço. Prosseguia na leitura, a mão direita segurando o volume de crônicas, o braço esquerdo servindo de apoio em barras de suporte. Enquanto lia, notei que alguém me olhava.

Silenciosa, mas nitidamente, um bebê com o rosto posicionado para a frente do ônibus me observava. Repousava no colo de uma mulher jovem, de cabelos lisos castanhos, usando óculos de armação marrom, os olhos quase na mesma tonalidade do cabelo; o castanho dos olhos do bebê mais escuro que o da moça, um penteado improvisado com os poucos fios claros na cabeça. Ele estava empacotado em uma espécie de manta branca, apenas a gola de uma roupa de soft visível, ela usava um traje acastanhado.

Olhei nos olhos do bebê. E ele nos meus. Os olhos dele iam para todas as direções, desde as janelas as pessoas em volta. Será que a capa do livro que eu lia o agradou? Ele pareceu observá-la, não sei se a multidão vista da metade do corpo para baixo cruzando uma faixa de pedestres debaixo de um céu preto era do gosto dele. O olhei de novo. E ele a mim, uma leve piscada de olhos. Retribuí. A moça que o segurava o muda de posição, seu rosto ficou virado para as janelas, mantendo a feição de explorador visual. Bom dia, Curitiba.

3.
O ônibus no qual eu estava chegara ao ponto em que desembarco. Finalmente, livre para andar com as próprias pernas, sem precisar competir por espaço. Segui pela avenida sete de setembro, ainda tinha quadras a percorrer até chegar ao destino. Clima frio, ainda restava um pouco de neblina, que cobria o topo de alguns prédios no bloco a minha frente, apesar de um sol que parecia acordar preguiçosamente. Gente agasalhada nas calçadas, empacotados debaixo de jaquetas e sobretudos.


Exceto um. Pela canaleta exclusiva do ônibus, em sentido oposto ao qual eu andava, um senhor corria de bermudas e tênis, segurando uma blusa ou camiseta amassada em uma das mãos. A cidade ainda por despertar, uma maioria tremendo de frio, e alguém correndo como se fosse pleno verão? Notei que indivíduos próximos a mim olharam o homem, talvez querendo ter certeza de que viram o disposto atleta – ou imaginando de que lugar teria saído tal louco. Bom dia, Curitiba.  

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Contornos da Brutalidade

Precisa-se de pouco para se espantar com o conteúdo daquela sala. Muito foi publicado sobre os itens nela depositados, desde abordagens formais a citações indiretas. Lendo friamente, parecem distantes, representações de épocas longínquas, apenas gravuras e descrições reproduzidas a exaustão. Até andar por aquele espaço.

Passando pela porta, seguindo reto, há uma mesa de madeira, com uma tampa de vidro por cima, tanto ela quanto uma proteção de um tecido vermelho acomodando os objetos da exposição. Em um canto, um papel retangular, na vertical, nele uma figura oval com variações avermelhadas. Um homem de expressão sofrida, parte da face virada para quem observa a imagem: uma espécie de colar preso aproximadamente na metade do pescoço, na frente um quadrado, aparentemente feito de metal, servindo de suporte a um objeto fino que se estende do queixo até abaixo do pescoço, cada extremidade com duas pontas divididas por curvas, ambas ferindo o indivíduo; perto da imagem, repousa a Forquilha do Herege.

“Firmemente segurado no pescoço da vítima, com uma correia de couro robusta e através das quatro pontas afiadíssimas, cravadas na carne, debaixo do queixo e no peito, impedia qualquer movimento ao torturado, permitindo-lhe, porém, confessar as suas culpas.” Assim está escrito em um papel perto deste item. Uma introdução branda à exposição de Instrumentos Medievais de Tortura, abrigada em uma sala do andar superior do Museu Municipal de Arte de Curitiba.

O objeto logo a direita da entrada da sala é a ‘Roda’. “Este castigo, de antigas origens, relaciona-se com significados religiosos e consistia em amarrar os réus numa roda que se fazia girar em torno de espinhos, pedras afiadas ou mesmo fogo vivo e, desse modo, o corpo vinha horrivelmente torturado”, lê-se no descritivo na parede. Noutra parte da sala, vê-se uma cadeira de ferro forrada de espinhos, com ligas para prender a pessoa pelos tornozelos e pulsos. Atrás dela, na frente de uma parede branca no meio do espaço, há um caixão de ferro disposto verticalmente, a parte de cima esculpida de tal forma que lembra uma máscara humana, e seu interior preenchido por espinhos, menos do que a cadeira citada anteriormente, mas posicionados de forma a causar uma dor calculada.

É uma das impressões possíveis após observar os instrumentos e ler as descrições de seu funcionamento. Eram ferramentas de coerção, utilizadas durante a Idade Média com a justificativa de obter confissões de suspeitos. Como se fosse possível ‘justificar’ cada ferida na anatomia humana alheia com acusações de heresia e bruxaria, apenas por um indivíduo supostamente não seguir um credo dominante.

Porém, os instrumentos medievais de tortura não eram usados apenas contra supostos dissidentes religiosos. Em descrições de alguns, lê-se que ladrões e assassinos também eram punidos, tornando-se tanto exemplos do que podia acontecer a infratores da lei quanto alvos de retaliações por parte da população - o Pelourinho sendo exemplo destas duas possibilidades. “Conhecido e utilizado desde os tempos mais remotos, na Época Medieval, que estava reservado, geralmente, aos vagabundos e mendigos, porém as mulheres não estavam isentas desse tratamento, sobretudo aquelas responsáveis de pouca fidelidade ao marido ou de ultrajem às [sic] noções de pudor social da época”, segundo a placa ao lado de um chicote, formado por um cabo e um corrente. Outra impressão possível ao analisar o conteúdo da exposição é de que não existiam limites para a tortura. Ao lado deste chicote, há um poste, com um par de algemas presas próximas a seu topo, e uma variação do referido instrumento,  composta por cordas finas; “recordamos o famoso gato das nove caudas, [...] cujas cordas eram encharcadas numa solução de sal e enxofre, dissolvidos na água, aumentando a sua eficiência”.

A exposição, que ficará em Curitiba até 6 de outubro de 2013, foi trazida da Itália por colecionadores europeus, e seus mais de 50 instrumentos, datados dos séculos XIII a XVII, entre originais e réplicas, foram vistos por alemães, russos, poloneses, espanhóis e argentinos, entre outras nacionalidades. São amostras de como o ser humano desperdiçou sua capacidade criativa preocupando-se em ferir a própria espécie, materializando contornos de brutalidade em infinitas formas de causar dor. A era presente infelizmente não é isenta deste aspecto, embora não seja o intento deste texto alavancar tal discussão.

Os escritos sobre a Garrota e das armas típicas de carcereiros informam que variações destes ainda são usadas, embora sem especificações quanto à circunstância. Talvez nas eras vindouras sejam expostas mais ferramentas cujo uso foi nada além do sofrimento alheio, independente da data de elaboração. Em uma amostra utópica na qual tais aparelhos sejam apenas memórias de um tempo em que o humano mutilava fisicamente seu semelhante. Enquanto tal milênio não chega, pode-se ter contato com esse lado ao observar os instrumentos de tortura.

Instrumentos Medievais de Tortura, Período da Inquisição
Museu Municipal de Arte de Curitiba – MuMA – Portão Cultural

Av. República Argentina, 3.430
Encerramento: 6 de outubro de 2013
De terça a domingo, das 10h às 19h. 
Ingressos a R$ 15 e R$ 7,50 (meia-entrada)

















Fotos: Walter Bach

PS.: originalmente publicado em
http://diesvenit.blogspot.com.br/2013/07/contornos-da-brutalidade.html

terça-feira, 30 de julho de 2013

As ideias e pessoas dos Encontos

Anoitecera em Curitiba. Clima frio, mas não o suficiente para congelar alguns cidadãos de irem a um determinado recinto. Especificamente, um paiol que em eras passadas foi depósito de  pólvora, mas após anos de reforma, tornou-se abrigo de material tão incandescente quanto, porém nada nocivo.

O Teatro Paiol estava aberto, e preparado para receber os convivas daquela noite. Dois cartazes, um colado em cada parede do interior, com frases e um anúncio sobre a atividade a acontecer; no palco, circundado por filas de cadeiras dispostas da parte mais baixa até a mais alta do tetro, fora montada uma mesa, na qual pratos com salgados e doces tinham por companhia garrafas de refrigerantes, e térmicas com chá e café.

Pessoas chegam ao estabelecimento, gradativamente formando grupos que dialogam entre si, desde frequentadores assíduos a recém-chegados. ‘Que achou do conto?’, ‘esse mês tivemos dois, gostei de ambos’, a conversa segue; até que o mediador é avistado. Ele toma seu lugar, uma banqueta no centro do palco, os participantes sentam-se nas cadeiras, e o curto silêncio dá lugar as falas da noite.

“Boa noite”, diz o doutor Jaime Bieler, com o microfone em mãos. Ele saúda os participantes, faz uma breve introdução dos contos a serem debatidos naquela noite, e diz, em tom de brincadeira, que “os novatos têm direito a um salgado e um copo de bebida”. A edição de Julho de 2013 do Encontos tinha começado.

Associado ao programa de incentivo a leitura Conversa entre Amigos, do deputado Marcelo Almeida, o Encontos começou como um grupo que se reunia para conversar mensalmente sobre um conto. Atualmente, os participantes recebem gratuitamente o conto via e-mail ou correio, e o encontro acontece na última segunda-feira de cada mês, no já mencionado Teatro Paiol. Em algumas ocasiões, o autor esteve presente na conversa, como em novembro de 2012, na comemoração da quinquagésima edição do Encontos, na qual se discutiu “O Encalhe dos Trezentos”, de Domingos Pellegrini, que permaneceu escondido em meio a plateia durante parte do evento - e depois foi até o palco para falar sobre a obra.

Uma vez começado o evento, qualquer participante é livre para falar, tanto em relação ao que gostou na história por motivos particulares a analisa-la de acordo com parâmetros sócio-cronológicos. Como o doutor Bieler afirmou noutras ocasiões, ‘não é um encontro de literatos’, e sim uma conversa sobre o conto. Machado de Assis, Edgar Allan Poe, Mario de Andrade e Horácio Quiroga estão entre os autores cuja produção originou debates, e aquela noite teve dose dupla: “Os Devaneios do General”, de Érico Veríssimo, e “Más Notícias”, de Luiz Vilela.

“Sobe o primeiro conto, o personagem pensava ser o dono de tudo, e começou a pagar pela crueldade que fez [ao longo da vida]”, diz um senhor na primeira fila. Em uma fileira na direção oposta, outra pessoa malha os protagonistas: “são pessoas sadomasoquistas, que não estão equilibradas, frutos do sistema que não souberam se adaptar a realidade”. Um rapaz na fileira do meio fala que era a primeira vez em que estava participando, e emenda ‘quem está vendo que ele [o personagem] está pagando pelo que fez somos nós que estamos lendo’.


Noutro local, uma mulher pede o microfone, e expressa o ‘mergulho’ que fez na mente da personagem.  “Como minha família está vendo meu envelhecimento, será que estou construindo relações ou remoendo o que não deu certo?”. Em meio a argumentos e, não raro, risos, presencia-se um encontro entre interpretações pessoais, de acordo com a forma que cada participante ‘traz o tema para nossa realidade’, nas palavras de um membro. Mas não só pelo encontro entre pessoas e ideias – o mediador já falou que, caso os novatos ‘se comportem’, terão direito a mais de um salgado. 

Os Retratos dos Croquis Urbanos

16 de junho de 2013. Manhã de céu cinzento em Curitiba. Saindo da praça Osório, uma das muitas referências do centro, e seguindo por rua que cruza com ela, notam-se poucas pessoas, transmitindo uma impressão de que a cidade está deserta.  O destino da caminhada é um ponto específico na rua Comendador Araújo, esquina com a Avenida Presidente Taunay.

Precisamente, uma antiga construção em frente a entrada de um shopping. Um casarão branco, grande, ocupando um pedaço considerável da quadra. Olhando-o mais de perto, percebem-se os muitos detalhes nas janelas, corrimões nas escadas, ícones que lembram Netuno ou outro deus grego debaixo de uma das sacadas, e uma parte do prédio, próximo de onde ele termina ao se aproximar de outra construção da quadra, há um telhado no mesmo tom de azul-claro das portas, janelas e detalhes que as circundam, debaixo do qual está uma pequena sacada, escondida pelos galhos de magras árvores a sua frente.

Um rapaz chega e começa a fotografar esta construção. Caçando o melhor ângulo, ele a documenta de frente, de lado, mais perto atrás de um detalhe dela. Três pessoas chegam, portando mochilas ou pastas em mãos, de onde tiram canetas, pincéis, lápis e pranchetas de desenho, e veem-se bancos de madeira ou plástico nas mãos de uma delas. Estas pessoas cumprimentam o homem, “é aqui hoje”, ‘logo o pessoal chega’, conversam, já procurando um lugar para começarem.

Gradativamente chegam mais membros do Croquis Urbanos. Desde o início de abril de 2013, o grupo se reúne para desenhar. Cada um se posiciona em um ponto ao redor da construção: duas mulheres ficam no banco do ponto de táxi próximo do encontro entre as duas ruas, um se encosta em um poste de luz, uma senta nos degraus da construção, outros três se ajeitam em banquinhos de madeira que levaram para debaixo de uma marquise do shopping, duas se sentam em uma parte do canteiro de plantas da calçada. Começa a chover, não tem problema: debaixo da marquise há espaço para todos, e ainda há quem fique um pouco mais perto do final dela, sujeito a água, com um guarda-chuva em uma das mãos, o lápis em outra e a prancheta no colo.

Praça Santos Andrade, casarão do Cristo Rei, Moinho do Rebouças, Vista Alegre, Praça das Nações estão entre os locais já desenhados pelo Croquis Urbanos. A cada encontro semanal algum local de Curitiba é visualmente documentado pelos membros do grupo, formado por arquitetos, engenheiros, chargistas, artistas plásticos, estudantes e pessoas de demais áreas, independente da atividade profissional estar ligada a desenhos.

Gradativamente, os contornos tomam forma e cor. Um risco horizontal, seguido de dois  verticais em cada ponta, um traço horizontal em cima, já se tem base de parte da construção – logo acompanhada  pelas outras peças que a compõem. Ao observar de perto o processo, nota-se a perspectiva particular de cada participante: na pintura de um, o casarão é retratado como uma fotografia em preto-e-branco; para outro, o azul é a cor dominante, debaixo da qual se escondem as linhas da construção; em um caderno há um traço rústico, marcando por um grafite escuro e cinzento; numa prancheta há aquarela clara, noutra tons brilhantes de canetas especiais; um destaca detalhes da parte mais alta da construção com azul claro, acompanhado pelo verde também claro das folhas de uma árvore; outro finaliza com verdes escuros e um tom levemente pálido de azul, acompanhados de tons semelhantes.

“O difícil é saber quando o desenho acaba”, diz Simon Taylor, chargista,  finalizando com leves toques no pincel, pingando gotas verdes no retrato que tece. Alguns já terminaram, e colocam os desenhos em uma escada do lado de fora do shopping.  “O legal desse grupo é isso, cada um desenha de uma maneira. É como se cada um buscasse uma voz, uma identidade [pelo desenho]” , afirma Taylor.


O grupo se reúne na frente da escada, admirando a produção da manhã. “E esse aqui de quem é?”, “isso aqui é bem o seu estilo!”, os comentários sobre o trabalho de cada pessoa seguem. Após algumas fotos, o grupo lentamente se dispersa, cada um a caminho do lar. Para na semana seguinte se reunir e desenhar outro local de Curitiba, ampliando o acervo de Croquis Urbanos. 

Fotos: Walter Bach

domingo, 28 de julho de 2013

Diálogo Silencioso

E nos encontramos quase por acaso, que você tem feito? Já comecei aquele projeto, posso te mostrar? Você me diz que seus estudos vão mal, de novo, e consegue mais do que imagina, mas é para isso que servem, não? E aquele caso, terminou enfim? E sei lá mais o que nos perguntamos.

Fazem o que, duas, três semanas que nos vimos pela última vez? Mais do que isso, qual de nós perdeu as contas? E só nos eventos de sempre, a agenda está sempre cheia você diz, que ingenuidade minha perguntar. Ao menos nesses locais – mais do que as atividades que nos movem, valem pelas pessoas que encontramos.

Tenho caminhado bastante, você conta, só para passar o tempo, aproveitar um pouco essas folgas. Bons quinze quilômetros, a distância é mais ou menos essa, ida e volta, digo que é uma boa distância, você me diz que anda isso em duas ou três horas, dependendo do dia.

Te conto das minhas andanças, cada vez maiores e mais tempo fora de casa, as vezes voltando por uma rua diferente da qual fui. De súbito, a ideia, já que ambos caminhamos tanto, que tal companhia? Claro, porque não, tenho um dia livre semana que vem.

O dia chega. Te encontro no local combinado, achei que viesse de casa, já estava na rua faz tempo? Não muito, você responde, e me indica por quais ruas seguiremos.

Me lembro daqui. Já comprei um presente na loja ali do meio, tem um almoço perfeito naquele restaurante, quando passei aqui anos atrás nem tinha essa calçada, passei aqui várias vezes e nunca olhei o nome das ruas, reconheço um pouco a região. Você me responde frase ou outra, brevemente.

Começa a parte nova, ao menos para mim. Nos afastamos um pouco da região central, mas ainda estamos em solo urbano. Até demais – algumas quadras mal tem espaço para nós, temos que pular por cima de buracos destampados, poças com água da chuva do dia anterior, pedras e materiais de construção da reforma que ainda não acabou, disputando o pouco espaço com pedestres apressados, o conjunto todo quase transformando o passeio em uma corrida de obstáculos.

Vamos por baixo da trincheira, os carros passando velozmente tanto a nossa direita quanto na rua de cima. Não precisamos competir com eles, nossa trilha é composta por trechos irregulares e inacabados, mas servem bem a nossos pés. Esta trilha particular é nossa forma de conhecer a cidade, excessivamente percorrida pelas vias principais para se incomodar com dois aspirantes a exploradores.

Noto detalhes. Talvez pequenos, sutis, mas nada que incomode. Seu silêncio. Não lhe pergunto o porquê. Apenas tento perceber, sem me preocupar onde sua mente está. Te tiro um pouco desse estado perguntando porque caminha olhando o chão, ouço um só olho de resposta. E você retoma sua não expressão verbal.

Assim foi durante quase todo o tempo em que andamos. Colocamos o assunto em dia semana passada, você talvez queira me perguntar sobre algo e não o faz, costume de ter o silêncio por companhia? Não indago, evito falar, te resumi minha vida naquela outra conversa, as novidades são velhas conhecidas suas. Tenho ideia que começou a dar frutos, preciso avaliar tudo, aquele livro que você indicou é perfeito, a viagem está próxima, os problemas são os mesmos, mas deixe; não falemos disso. Não falemos.

Além do exercício físico, ou passatempo, ou puro gosto por bater perna por aí meio sem destino, é uma atividade preenchida por quietude. Não as poucas falas constrangedoras com desencontros verbais, nada de recolhimento em si porque o outro disparou a própria fúria pelo verbo, tampouco uma conversa forçada porque um dos interlocutores não sabe quando encerrar o assunto.

Apenas silêncio. Condição calma e espontânea, pouco dizendo tudo, uma compreensão moldada além das palavras.  Suavemente interrompida- você me indica o lugar aonde chegamos, e me diz para olhar na direção oposta. Andamos tudo isso. Um discreto sorriso lhe invade a face, dedicamos minutos a contemplar a paisagem desenhada pelas distâncias percorridas a pé.


Você me diz que devemos voltar, o almoço nos espera em casa e ainda há a tarde em frente. Retornamos ao trajeto, e, discretamente, ao nosso diálogo silencioso. 

PS.: originalmente publicado em http://diesvenit.blogspot.com.br/2013/06/dialogo-silencioso.html

Envelhecimento Fotográfico

Metade dos itens mudados de lugar, dois sacos de plástico cheios de lixo, algumas revistas e jornais velhos separados, livro esquecido em um canto do armário, CDs e filmes empilhados, além de chaveiros, enfeites, lembranças e cartas encaixotados, enfim, um mínimo de organização no quarto.  Mas ainda não tinha encontrado o que procurava.

Sem alternativa, o jeito foi me render ao quarto ‘dos fundos’ – aquele espaço na casa que não serve de dormitório há meses, mas está ocupado por uma bagunça de objetos indesejáveis sem data de saída.  Na base do que parece ser uma pilha de sacolas e caixas de eletrônicos, uma caixa na qual eu esperava que estivesse o que motivou a expedição em meio a tanta tralha.

Ela servia de depósito para uma coleção de fotos, do tempo da máquina fotográfica, quando não se podia cometer um mínimo erro que fosse – eram 36 ‘poses’, e olhe lá. Depois do décimo álbum que revirei, perdi as contas. Fotos soltas e negativos faziam companhia aos álbuns, um acervo guardado a parte, longe dos excessos do arquivo digital.

Imagens de 8, 10 anos atrás ou mais, alguns sustos ao olhar as datas anotadas no verso. Olhar fotos antigas é algo entre cômico e assustador. Nem eu lembrava que certo parente meu já teve cabelo, mas com certeza ele não me deixaria esquecer alguma besteira qualquer – menos ainda quem documentou a traquinagem em uma foto. Atividades do colégio, visitas de amigos em casa, viagens de família, não foram poucas as risadas nessa busca.

Alguns minutos de nostalgia depois, encontrei até mais do que imaginava. Peguei o telefone, avisei um (velho) amigo : “achei! Venha para cá.” Constantemente fui questionado sobre esses registros, que eu nunca achava por sei lá o que, e a cobrança se tornou quase tão antiga quanto a amizade. Ainda bem que as fotos estavam intactas.

As fotos. Quantos as pessoas nelas, não arrisco. “Olha sua cara de criança nessa foto, que é isso” ; “isso daqui é muito velho, foi antes de você ficar gordo”; “olha que besta a gente era nesse tempo”; “que cara andrógina nessa foto, credo”; “a gente tá ficando velho”. Envelhecemos alguns anos, ficaram esses registros visuais e as muitas lembranças. “Uma reunião dessas seria impossível hoje” me diz o amigo, com uma foto de uma festa de pelos menos cinco anos atrás em mãos. Tenho de concordar. Do grupo, cada um foi cuidar da própria vida em um canto diferente, todos cada vez mais ocupados – e constato isso a cada vez que consigo reencontrar alguém.

Somem-se os compromissos a presença da comunicação digital, parece que as conversas face a face tornaram-se mais raras. Ao oposto de papos sobre como mudou a vida daquele tempo até hoje (um ano atrás parece bastar), sem rendições a nostalgias, mas apenas por alguma saudade da companhia. Envelhecemos, ficamos ocupados, voltamos a trabalhar, nos dedicamos aos estudos, o que for – nos afastamos de alguns e conhecemos outros, renovando o ciclo.


Após conversar pela internet com pessoas que fisicamente estão longe, fico alguns instantes parado em frente ao computador. Vou a cozinha abastecer uma xícara com chá, olho de relance para o quarto de minha mãe, e noto que ela adormeceu. Com os olhos fechados e enrolada no cobertor, parece uma criança empacotada pronta para dormir, esperando que alguém apague a luz, desligue a televisão e lhe dê um beijo de boa noite. E eu e alguns amigos ainda nos espantamos e nos perguntamos o que é envelhecer.

Ps.: originalmente publicado em
 http://diesvenit.blogspot.com.br/2013/05/envelhecimento-fotografico.html