A arte de perder não é um mistério - assim
escreveu Elizabeth Bishop em um de seus poemas, recitado por José Carlos
Fernandes na abertura palestra de quarta-feira, 23 de outubro de 2013, no
terceiro dia da FLIM – Festa Literária do Medianeira. Perante uma tenda lotada
por um público misto de professores, jornalistas, alunos do Colégio Medianeira,
estudantes de jornalismo – classe profissional a qual tanto Fernandes quanto a
convidada pertencem – e outros visitantes, a escutadeira, como Elaine Brum se
define, conta uma história na qual responde ao mediador porque saiu da Revista
Época.
Em 2008, Brum conta, ela começou a trabalhar
com a morte. Durante uma reportagem, acompanhou os últimos 115 dias de uma
mulher, de nome Ilse, cujo falecimento se deu por um câncer. Durante estes
dias, falava com Ilse diariamente, por telefone ou face a face, e em meio a uma
dessas conversas ouviu dela que ‘quando tinha tempo, descobri que meu tempo
tinha acabado’. A partir deste trabalho em particular, Brum passou a se dedicar
no que considera reapropriação do tempo, uma construção constante, pois como
ela ouviu de um de seus professores, tempo não é dinheiro, e sim o tecido das
nossas vidas.
Em meio a esta reapropriação do próprio
tempo, em 2010 Eliane Brum deixa o emprego na redação da Época, mantendo apenas
sua coluna no site da revista, um espaço utilizado por ela até setembro de
2013, quando se desapropriou deste espaço virtual. Uma segunda parte deste
processo foi criar uma segunda voz na ficção, especificamente o romance Uma
Duas, lançado em 2011. Eliane conta que foi questionada diversas vezes por
colegas de profissão ‘qual é o seu rumo agora?’, ao que ela responde que está
em desrumo, uma necessidade de se desinventar para se reinventar.
José Carlos Fernandes retoma, conta alguns
acontecimentos da Eliane Brum, que ficou surpresa pela pesquisa do mediador –
um livro aos 11 anos, maternidade aos 15, a escrita do livro Vida que Ninguém
Vê, e indaga-a qual foi a grande ‘dobra’ de sua vida. Todas e mais algumas, ela
responde, contando que não estaria viva se não conseguisse transformar dor em
palavra escrita, algo que fez no Gotas da Infância. O livro – muito ruim, diz
Brum - era uma coleção de pedaços de papel nos quais Eliane escreveu sobre essa
nomeada dor de existir, sentida durante sua infância, deixados pela casa como
pistas para que a família a decifrasse; mas o pai não somente os guardou como
os transformou no mencionado livro, um retrato de sua infância, lugar de difícil
vivência para algumas crianças, de acordo com ela.
O mediador retoma e menciona uma pergunta
feita pelo jornalista Gilberto Dilmenstein a várias personalidades, que é feita
a palestrante – a quem você deve ser quem você é? A muita gente, responde Eliane
Brum, e brincando diz ser igual ao pai - conta uma história iniciada anos antes
do momento atual para responder algo. Mas conta de outra pessoa a quem deve seu
desenvolvimento, uma que ela não pôde conhecer.
No século XIX, o estanceiro Sabino Andrade Neves,
de abastada família do Rio Grande do Sul, apaixonou-se por uma escrava.
Enamorados, tiveram uma filha, e Sabino assumiu tanto mãe como criança. A mãe
faleceu após o nascimento desta, e o estanceiro teve de cria-la sozinho, pois
fora deserdado pela família. Sabino tinha estudo o suficiente para lecionar,
uma profissão que sua filha, batizada Luzia, herdou, e pai e filha peregrinaram
pelos interiores do Rio Grande do Sul vivendo como professores. Entre os alunos
de Luzia, estava o pai de Eliane Brum, que foi a primeira pessoa da família a
aprender a ler. Enquanto morava em Ijuí, cidade natal, Brum foi levada pelo pai
ao túmulo da professora Luzia, responsável não apenas por ensinar a leitura,
mas por tirá-los de uma cegueira das letras, considerando a leitura um ato de
enxergar o mundo.
Visão composta por uma delicadeza aprendida
em família, aspecto habitante do mundo. Brum conta que criou sentido ao
decifrar como cada um dá sentido a própria vida, muitas vezes como poucos
recursos. Toda história é grande para a escutadeira, como se intitula,
‘buscadeira’ de sentidos próprios nos olhares alheios.
Sentidos que vem de desacontecimentos,
responde Eliane a José Carlos Fernandes. Ela considera o jornalismo como
documento da história cotidiana, retratada em muitas de suas crônicas, cujas
pessoas entrevistadas estão longe de padrões de manchetes de jornal. Afirma que
nenhuma vida se torna banal quando se reconhece a grandeza alheia, no que chama
a extraordinária vida comum.
No jornalismo, tornou-se comum chamar pessoas
entrevistadas de personagens, independente de sua natureza, e Fernandes
questiona Brum qual relação ela tem com as personagens das matérias. Ela diz
que quando um repórter reduz uma pessoa a uma personagem ele está sendo
traidor, pois personagem é da ficção, como se fosse pessoa ‘pronta’, enquanto
ela vê o jornalismo como decifração do outro. Em resposta direta, Eliane conta
ter relações fortes com tais pessoas, procura fazer um processo interno antes
de entrevista-las – pergunta-se se fosse ela sendo entrevistada, permitiria que
alguém a indagasse sobre suas atividades e anseios. Tudo isso porque, como
afirma, a gente não entra na vida dos outros impunemente.