sábado, 26 de outubro de 2013

Cinemas e Calçadas – Mariana Sanchez e José Carlos Fernandes na FLIM 2013

Manhã de quinta-feira, 24 de outubro de 2013. No quarto dia da Flim, Festa Literária do Medianeira, o salão nobre deste Colégio abrigou uma conversa entre dois narradores da capital paranaense, os jornalistas José Carlos Fernandes e Mariana Sanchez. Letícia Magalhães, mediadora desta sessão, menciona a escritora curitibana Teresa Urban, que preferia ser chamada de jornalista, pois embora autora de livros cujo conteúdo esbarrou na ficção, considerava-se mais jornalista do que propriamente escritora; e comenta também sobe a palestra da noite anterior, em que a igualmente jornalista Eliane Brum afirmou que há realidades que só a ficção suporta.

No cinema a fronteira entre ficção e documentário tornou-se difusa, diz Mariana Sanchez, e na literatura há um movimento semelhante. Narrar é da natureza humana, ninguém chega em casa ou em uma roda de amigos sem ter o que contar. Especificamente sobre a literatura, Sanchez comenta sobre o suposto ‘não servir para nada’ em torno dela, um raciocínio em torno da literatura por sua aparente falta de utilidade prática – um não servir para nada que é fundamental, de acordo com a jornalista, afirmando que a literatura amplia o mundo para a subjetividade. É entrar em contato com uma experiência alheia, confronto com as visões de outros, diz.

Maior especialista de determinado assunto por uma hora, eis o jornalista, descreve José Carlos Fernandes. O contato com a realidade vicia, ele conta, é como se estivesse sempre em busca da próxima história a ser contada; uma realidade mais fascinante que a ficção, pois ninguém imagina que um determinado fato tenha acontecido. Fernandes menciona a história de uma mulher que ele conheceu em uma favela, cuja prole é formada por 24 filhos. Em contato com profissionais da área médica, Fernandes não teve notícia de que 24 gravidezes fossem impossíveis, mas essa história que não consta na literatura médica existe. Mencionando as personagens. Afirma que lemos para encontrar pessoas em profundidade, cujas camadas são descobertas durante este processo – algo que vale também na ficção, menciona Capitu e Anna Karienina, de quem se descobre as razões de adultério ao ler suas histórias (acreditando na hipótese de Capitu ter traído Bentinho, este merecendo, se explica Fernandes).

Letícia Magalhães pergunta a Mariana Sanchez sobre o cinema brasileiro, muitas vezes julgado desinteressante pelo público, parte disso pela temática favela/pobreza. Há extremos, responde Sanchez, pois alguns diretores vêm de classes econômicas abastadas, e um oposto extremo é essa parcela da realidade retratada nas telas, ainda que de maneira exótica. Mariana faz uma breve comparação entre os cinemas brasileiros e argentinos, não em termos de conteúdo, mas de cultura – os ‘hermanos’ possuem certa tradição de ir ao cinema para assistir a produção nacional, algo que nosso Brasil perdeu um pouco.

Curitiba tem exemplo disso, pois houve uma redução no número de cinemas de rua, e mesmo com salas dentro de shoppings o público não é o mesmo, numérica e culturalmente. Devemos procurar o que gostamos neste universo infinito do cinema, afirma Mariana, lembrando que festivais dedicados a sétima arte tornaram-se mais comuns e acessíveis, por vezes sem cobrança de ingresso.

José Carlos Fernandes menciona uma frase de Steve Backes, que afirmou que nós sabemos mais sobre o imaginário norte-americano do que sobre o brasileiro, algo que se deu, em parte, por não ter existido uma construção do cinema daqui. Além disso, não é apenas a experiência da sala escura ou quaisquer possíveis rituais em torno do cinema, mas as narrações por meio das imagens amplificadas possibilitam uma compreensão de como nós somos, algo em andamento, ele conta.  


Quanto a coluna que mantém na Gazeta do Povo, na qual Curitiba é narrada por pessoas cujas palavras não seriam amplificadas por manchetes, sua origem veio, em parte, de um dado de uma pesquisa do jornal, apontando afastamento de leitores por conta de notícias sobre violência. Fernandes cita Susan Sontag – é impossível nos sentirmos insensíveis perante o mundo, mas pode existir um sentimento de impotência frente a sua face violenta. Há gente interessante em todos os lugares, afirma José Carlos, convicto de que todo mundo tem uma história para contar; e ao ouvir e contar as narrações de Curitiba por seus habitantes mapeia-se afetiva e simbolicamente a cidade, para motivar pessoas a voltarem para ruas e calçadas, pois, afirma, é nelas que a vida acontece. 

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Decifrando Pessoas – Eliane Brum na FLIM 2013

A arte de perder não é um mistério - assim escreveu Elizabeth Bishop em um de seus poemas, recitado por José Carlos Fernandes na abertura palestra de quarta-feira, 23 de outubro de 2013, no terceiro dia da FLIM – Festa Literária do Medianeira. Perante uma tenda lotada por um público misto de professores, jornalistas, alunos do Colégio Medianeira, estudantes de jornalismo – classe profissional a qual tanto Fernandes quanto a convidada pertencem – e outros visitantes, a escutadeira, como Elaine Brum se define, conta uma história na qual responde ao mediador porque saiu da Revista Época.

Em 2008, Brum conta, ela começou a trabalhar com a morte. Durante uma reportagem, acompanhou os últimos 115 dias de uma mulher, de nome Ilse, cujo falecimento se deu por um câncer. Durante estes dias, falava com Ilse diariamente, por telefone ou face a face, e em meio a uma dessas conversas ouviu dela que ‘quando tinha tempo, descobri que meu tempo tinha acabado’. A partir deste trabalho em particular, Brum passou a se dedicar no que considera reapropriação do tempo, uma construção constante, pois como ela ouviu de um de seus professores, tempo não é dinheiro, e sim o tecido das nossas vidas.

Em meio a esta reapropriação do próprio tempo, em 2010 Eliane Brum deixa o emprego na redação da Época, mantendo apenas sua coluna no site da revista, um espaço utilizado por ela até setembro de 2013, quando se desapropriou deste espaço virtual. Uma segunda parte deste processo foi criar uma segunda voz na ficção, especificamente o romance Uma Duas, lançado em 2011. Eliane conta que foi questionada diversas vezes por colegas de profissão ‘qual é o seu rumo agora?’, ao que ela responde que está em desrumo, uma necessidade de se desinventar para se reinventar.

José Carlos Fernandes retoma, conta alguns acontecimentos da Eliane Brum, que ficou surpresa pela pesquisa do mediador – um livro aos 11 anos, maternidade aos 15, a escrita do livro Vida que Ninguém Vê, e indaga-a qual foi a grande ‘dobra’ de sua vida. Todas e mais algumas, ela responde, contando que não estaria viva se não conseguisse transformar dor em palavra escrita, algo que fez no Gotas da Infância. O livro – muito ruim, diz Brum - era uma coleção de pedaços de papel nos quais Eliane escreveu sobre essa nomeada dor de existir, sentida durante sua infância, deixados pela casa como pistas para que a família a decifrasse; mas o pai não somente os guardou como os transformou no mencionado livro, um retrato de sua infância, lugar de difícil vivência para algumas crianças, de acordo com ela.

O mediador retoma e menciona uma pergunta feita pelo jornalista Gilberto Dilmenstein a várias personalidades, que é feita a palestrante – a quem você deve ser quem você é? A muita gente, responde Eliane Brum, e brincando diz ser igual ao pai - conta uma história iniciada anos antes do momento atual para responder algo.  Mas conta de outra pessoa a quem deve seu desenvolvimento, uma que ela não pôde conhecer.

No século XIX, o estanceiro Sabino Andrade Neves, de abastada família do Rio Grande do Sul, apaixonou-se por uma escrava. Enamorados, tiveram uma filha, e Sabino assumiu tanto mãe como criança. A mãe faleceu após o nascimento desta, e o estanceiro teve de cria-la sozinho, pois fora deserdado pela família. Sabino tinha estudo o suficiente para lecionar, uma profissão que sua filha, batizada Luzia, herdou, e pai e filha peregrinaram pelos interiores do Rio Grande do Sul vivendo como professores. Entre os alunos de Luzia, estava o pai de Eliane Brum, que foi a primeira pessoa da família a aprender a ler. Enquanto morava em Ijuí, cidade natal, Brum foi levada pelo pai ao túmulo da professora Luzia, responsável não apenas por ensinar a leitura, mas por tirá-los de uma cegueira das letras, considerando a leitura um ato de enxergar o mundo.

Visão composta por uma delicadeza aprendida em família, aspecto habitante do mundo. Brum conta que criou sentido ao decifrar como cada um dá sentido a própria vida, muitas vezes como poucos recursos. Toda história é grande para a escutadeira, como se intitula, ‘buscadeira’ de sentidos próprios nos olhares alheios.

Sentidos que vem de desacontecimentos, responde Eliane a José Carlos Fernandes. Ela considera o jornalismo como documento da história cotidiana, retratada em muitas de suas crônicas, cujas pessoas entrevistadas estão longe de padrões de manchetes de jornal. Afirma que nenhuma vida se torna banal quando se reconhece a grandeza alheia, no que chama a extraordinária vida comum.


No jornalismo, tornou-se comum chamar pessoas entrevistadas de personagens, independente de sua natureza, e Fernandes questiona Brum qual relação ela tem com as personagens das matérias. Ela diz que quando um repórter reduz uma pessoa a uma personagem ele está sendo traidor, pois personagem é da ficção, como se fosse pessoa ‘pronta’, enquanto ela vê o jornalismo como decifração do outro. Em resposta direta, Eliane conta ter relações fortes com tais pessoas, procura fazer um processo interno antes de entrevista-las – pergunta-se se fosse ela sendo entrevistada, permitiria que alguém a indagasse sobre suas atividades e anseios. Tudo isso porque, como afirma, a gente não entra na vida dos outros impunemente. 

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

Recriação Poética – Ricardo Pozzo e Marcelo Sandmann na FLIM 2013

Segundo debate de terça-feira, 22 de outubro, na Festa Literária do Medianeira – FLIM 2013. No palco da tenda montada próxima a cancha esportiva do Colégio Medianeira, Cezar Tridapalli, organizador do evento, fala ao público, formado em maioria por estudantes de 14-15 anos, sobre o bate-papo da mesma manhã, no qual Daniel Zanella e Luiz Andriolli comentaram que a literatura permite conhecer outras pessoas, como se as desses voz – e Tridapalli passa a vez para Assionara Souza, mediadora desta sessão.

Ela pergunta aos dois escritores convidados onde se esconde a poesia, visto que ambos adotaram esta forma de expressão. Para Ricardo Pozzo, as crianças tem uma felicidade interior única, e o ‘mundo adulto’ muitas vezes perde a sensibilidade para perceber as sutilezas do mundo delas, recriado a sua própria maneira, e na falta de quem as ouça acabam falando sozinhas – parte desse ‘falar sozinho’ sendo fonte de poesias e demais escritos.

Já Marcelo Sandmann escreve a partir de textos que lê – ‘estou o tempo todo conversando com outros escritores’. Mas não é apenas dessas leituras que ele se alimenta para escrever, e sim de experiências pessoais, na observação de detalhes do cotidiano.

Pozzo diz que começa a escrever porque lê, e diz que todo mundo tem direito a escrever. Mesmo que seja algo apenas para si, ou que a pessoa não goste do que escreveu quando for ler de novo, pois considera que ao escrever se transmite um sentimento que não poderia ser contado de outra forma.

Após ler um trecho de um poema de Marcelo Sandmann, Assionara Souza pergunta como é a exposição de outros textos em sua obra. Sandmann menciona policial em ascensão, histórias macabras ou pesadas do cotidiano, conta que só as manchetes dos noticiários por si mesmas já contam histórias, e a reunião que ele faz delas em suas poesias é como um choque de linguagem entre o lado ‘bruto’ da realidade e o poético.


É preciso ser muito humano para ter sensibilidade hoje, argumenta Ricardo Pozzo. Nas palavras dele, a poesia é uma significação de força e sensibilidade, uma das expressões de humanidade em um mundo que há incentivo a tudo, menos a essa face sensível. 

Leitor como Amigo - Daniel Zanella e Luiz Andrioli na FLIM 2013

Manhã de terça-feira, 22 de outubro de 2013, segundo dia da Festa Literária do Medianeira – FLIM. Dentro da tenda montada próxima a cancha esportiva, algumas pessoas escolhiam seus lugares tranquilamente, os convidados deste bate-papo se encaminhavam para o palco, não sem antes serem avisados para ‘se prepararem’. Em um breve momento começa a sessão, e eis que dezenas de alunos, na faixa etária de 13-14 anos, entram na tenda e lotam-na com suas elétricas presenças.

Ricado Pozzo, mediador, pergunta aos dois convidados sobre o ‘assunto do momento’, a biografia, considerando que na semana anterior a esta sessão houve polêmica devido a família do falecido poeta curitibano Paulo Leminski não ter autorizado a publicação de uma biografia deste escrita por Domingos Pellegrini – fato mencionado pelo mediador. Daniel Zanella responde que a imagem de uma pessoa pública pertence a coletividade, como se a vida da pessoa, no caso, Leminski, não pertencesse mais a família dela, embora ela procure velar os mortos a própria maneira. Zanella considera tal impedimento é um ranço da ditadura, devido a este cerceamento de informação.

Impedir a publicação de uma biografia é censurar uma história, e este ato é o mesmo de censurar uma reportagem que expõe riscos de uma decisão política equivocada, responde Luiz Andrioli, outro convidado desta mesa. Ele conta do processo e escrita do livro O Circo e a Cidade, sobre a trajetória da família circense Queirolo em Curitiba. Conheceu membros desta família através da própria, e após longa pesquisa começou a escrever o livro, o que significou contar acontecimentos bons e ruins. Alguns dos Queirolo não gostaram do que leram ,e tentaram convencer Andrioli a desistir da biografia; mas meses depois do livro ter sido publicado, a família circense passou a aceita-lo como seu. Ninguém gosta de se ver no espelho, diz Andrioli, e pergunta para o público – alguém já gravou a própria voz? Gostou do que ouviu? Um coro de ‘nããããos’ foi a resposta, e ele comenta que é semelhante em relação a biografia.

Ricardo Pozzo pergunta aos convidados como é a percepção do que constrói uma boa história. Daniel Zanella menciona Nelson Rodrigues, admirado por suas crônicas ditas simples, acessíveis a todo cidadão; ao que este disse em uma entrevista ‘vocês não imaginam como é difícil escrever simples’. Zanella conta que o cronista deve enxergar o leitor como amigo, para quem conta algo do cotidiano sem que isso soe conteúdo apenas para entendidos ou iniciados em determinado assunto, mas sim uma conversa leve; de maneira que o leitor, se identificando com que lhe é contado, enxergue no escritor um amigo próprio.

Luiz Andrioli conta sobre uma crônica que escreveu para a revista TopView, sobre uma barista. Ao conversar com a barista, soube que parte da família dela havia trabalhado com café, desde parentes que haviam estudado o tema a alguns que sobreviveram de plantações de café em eras passadas. Mas não parecia ser o suficiente, era como se faltasse algo para ‘fechar o texto’, a gíria do jornalismo para terminar a matéria. Andrioli disse que se valeu se um detalhe para tanto: durante o tempo em que entrevistou a barista, no local de trabalho desta, o marido dela foi até lá e entregou-a algo, pequeno o suficiente para caber em uma mão fechada – um brinco, precisamente. O jornalista pediu para ver o brinco, que tinha a forma de um grão de café pintado a ouro, de onde veio o nome da crônica – Grão de Ouro. É ao observar detalhes que vem a inspiração, conta o jornalista.

Respondendo a uma pergunta de Ricardo Pozzo, Luiz Andrioli recomenda a leitura de Érico Veríssimo e Dalton Trevisan. Cita uma pesquisa publicada pela revista Science, na qual se escreveu que quem lê mais ficções e romances está mais apto a conhecer o outro, tendo uma sensibilidade maior, não a ponto de chorar pelo que presencia, mas no sentido de perceber as nuances do contexto que o cerca.


Zanella conta que lê 30 páginas, se não se sentir conquistado este ‘prazo’, desiste do livro. O importante, ele diz, é encontrar um livro que possa divertir o leitor. Considera importante a expansão do acervo literário, mas com cautela, conta que a indicação de alguns livros lhe foi desastrosa em determinados momentos – não tinha consciência para entender Dom Casmurro aos 11 anos. Zanella fala que a literatura pode ajudar a conhecer pessoas, algo que somado ao que ele e Andrioli contaram neste bate-papo, pode fazer com que leitores e escritores vejam nas produções e leituras uns dos outros alguém com quem conversar.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

Herança por meio de Histórias – Ilan Brenman na FLIM 2013

Escritores são herdeiros dos narradores, de acordo com Cecília Meireles. A frase é citada por Ilan Brenman, na primeira palestra da Flim 2013 – Festa Literária do Medianeira, em uma chuvosa noite de segunda-feira, 21 de outubro. A mencionada frase de Meireles, Brenman adiciona que vivemos e morremos por causa das histórias, algo explicado por meio de uma que ele conta.

Em um reino muito distante, havia um rei muito poderoso, apaixonado por sua rainha. Porém, um dia ela adoeceu, emagreceu muito, e o rei pediu auxílio aos melhores médicos do reino. Porém, em vão – a rainha continuava doente, magra e triste. Em busca de socorro, o rei andou por todos os cantos, e nenhum remédio parecia bastar. Até encontrar um camponês, que o apresentou a sua esposa – sorridente,  saudável e em forma. ‘Mas o que o senhor dá a sua esposa, que ela está tão bem?’ perguntou o rei, e ouviu do camponês que este a alimentava com carne de língua. O rei deu-se por satisfeito com a resposta, voltou ao seu castelo e instruiu ao cozinheiro que preparasse tal prato.

Ilan Brenman continua com a história –seu cozinheiro preparou a tal ‘carne de língua’ com o que tinha- língua de cobra, sapo, qualquer animal que fosse; mas, mesmo com ingerindo essa refeição, a rainha não melhorou. E o rei afligia-se, se perguntava porque o tal ‘remédio’ funcionou tão bem com a esposa do camponês, mas não com sua amada rainha. Foi conversar com o camponês, contou-lhe que serviu carne de língua a rainha mas ela não melhorava, e os dois homens trocaram de lugar por alguns dias – o rei foi cuidar da esposa do camponês, enquanto aquele foi cuidar da rainha. Ao desfazer a ‘troca’, o rei notou que a rainha estava bem, tinha voltado a forma, sorridente, ao que a esposa do camponês adoeceu. Este perguntou o que houve, e o rei contou que serviu a tal carne de língua a esposa do camponês da mesma forma que a rainha, e o camponês explicou o que realmente significava tal expressão. Não era de comer ou beber, ou algo físico, e sim contar histórias para a pessoa. Aí o rei suspendeu o prato que pediu a seu cozinheiro, a passou a contar histórias para sal rainha.

Após terminar de contar esta história, Brenman comenta dos vários tipos de ‘carne’ do que nomeou açougue da vida, há desde carne fina de primeira qualidade a comida de quinta. E adverte - se nos alimentamos apenas de histórias ‘fast-food’, viramos zumbis.

Mas ilustrar um raciocínio por meio do conto parece não ser o suficiente. Por que inventar histórias se podemos falar? Ilan questiona a plateia, uma multidão de pais, mães, professores, crianças e visitantes que lotou o salão nobre do Colégio Medianeira. A primeira resposta veio de uma criança na segunda fila, próxima ao palestrante: para deixar a vida interessante. Outras respostas, de adultos, vieram de carona – pelo conhecimento, criatividade.

O homem não suporta a angústia de não compreender o mundo, e as histórias eram criadas para explica-lo, conta Brenman. No contato com estas ferramentas de compreensão chamadas histórias e linguagens, podemos entender a história da natureza humana, e perceber que não houve mudança nela, diz o palestrante, que considera a espécie como a mesma de sempre.

Parte da herança dos escritores, legado dos narradores, conforme a citação no início desta palestra, pode ser explicada por outro ato falado por Ilan: nomear. Usando uma frase do psicanalista francês Jacques Lacan, argumenta que quando não se nomeiam sentimentos, eles nos devoram; enquanto o ato de nomear é mais do que mera definição, é uma proteção.

Ao contrário do chamado politicamente correto de não mostrar realidades as crianças e disfarçar temas com palavras suaves, como se falar de violência fosse incentivar um comportamento violento na criança - um pensamento que Ilan comenta ser ultrapassado nas áreas educacionais estrangeiras, mas ainda corrente no Brasil.


A criança é dona de um mundo interior rico e complexo, argumenta Ilan Brenman. Um universo a ser explorado com cuidado e sensibilidade, nomeando experiências e sensações, evitando ou possivelmente reduzindo a angústia da incompreensão, especialmente ao considerar que as viagens das crianças (por meio de leituras ou não) não são as mesmas de pais e mães. E assim se toma posse da herança deixada por narradores e escritores.