quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Pela Porta dos Quadrinhos – Fábio Moon e Rafael Coutinho na Semana Literária Sesc 2013

Último dia da Semana Literária Sesc 2013, que ocorria ao mesmo tempo em que a XI Feira Universitária UFPR, em Curitiba, capital do Paraná. Naquela manhã de sábado 21 de setembro, o último debate estabeleceu uma ponte com uma forma particular de leitura, mais precisamente os desenhos das Histórias em Quadrinhos.

Pela Porta dos Quadrinhos é o nome desta sessão, para a qual foram chamados dois quadrinistas. O mediador Yuri Al’Hanati inicia, perguntando a ambos como se deu o processo de transposição de histórias literárias para o universo das HQs. Fabio Moon conta que a HQ tem espaço delimitado, a história em questão teria que ter 70 páginas, e a preocupação dele durante o desenho de O Alienista foi manter a narração e o ritmo de leitura, pois não queria perder o que gosta no original de Machado de Assis, mesmo que a história desenhada fosse de sua autoria. Quanto a Rafael Coutinho, a diretriz foi contar Branca de Neve e os Sete Anões de maneira a manter o ambiente da original, sem ‘modernizar’ o conto.

Al’Hanati os indaga qual a experiência deles como leitores de quadrinhos adaptados. “Adaptação literária responde a uma demanda do país”, explica Coutinho. Conta que mesmo mantendo a essência da história original, o produto final acaba sendo outro, pela composição da HQ.

Vê a venda unicamente para escolas como problema, pois a pressa para cobrir uma demanda de adaptações pode ocasionar a contratação de editoras duvidosas, que alterem o conteúdo e sentido durante o processo. A isto, Fábio Moon complementa que criar uma História em Quadrinhos demora, e nem sempre há preparo para esta transposição ao atender uma demanda com urgência. “HQ é criar uma bolha e jogar o leitor lá, se o mercado não dá esse espaço, a bolha explode”.

Essas versões adaptadas podem ajudar a estimular o interesse pela versão original?, indaga o mediador. Fábio Moon responde que os poderes visuais e textuais das HQs dialogam com várias mídias e possuem características próprias. “A história tem que fazer a pessoa se sentir parte daquilo”, explica. “Faço a HQ o melhor que posso, talvez a pessoa queira ler a próxima coisa que faço.”.


Quanto a Rafael Coutinho diz que a forma com que a literatura é vista deve ser repaginada. “Tem que parar de enfiar Machado de Assis e Eça de Queiroz goela abaixo [dos estudantes], para de chamar adolescente de ignorante porque não leu a literatura do tempo da minha vó”, afirma. Seu colega complementa que a aprendizagem deve servir para instigar os alunos a fazerem relações entre as obras, “se não mostrar relevância o aluno não se interessa”. 

Transição do Mercado Editorial – Heloisa Jahn e André Conti na Semana Literária Sesc 2013

Há dados numéricos contabilizando os livros vendidos em 2011 na casa dos milhões, uma informação que soa uma incógnita em um Brasil onde a média de leitura é quatro livros anuais por pessoa. O que acontece de fato? É apresentando tal informação e pergunta que se inicia a mesa-redonda Mundo de Livros, mediada por Omar Godoy, na noite de sexta-feira, vinte de setembro, inclusa na Semana Literária Sesc 2013.

A convidada Heloisa Jahn conta ter visto o panorama do mercado editorial pelo prisma de quem trabalhou anos revisando material para publicação, visto que ela tem experiência na Brasiliense e na Companhia das Letras. “As editoras tem buscado transformar o livro em objeto importante”, afirma, após comentar que anos atrás não havia tanto cuidado na revisão dos livros. As traduções nem sempre eram do idioma original, mas a origem delas nem sempre era informação disponível ao comprador, e a diagramação dos livros foi outro aspecto que foi gradativamente aperfeiçoado – além dos direitos autorais, postos em prática a partir da metade da década de 80.

A partir do que Jahn conta, pode-se interpretar que a convivência com a internet, como ela chama, está inclusa nesta transformação. Ela faz uma divisão entre as leituras do objeto livro e as da rede virtual: “leitura profunda do livro contra a leitura rasa de internet, a capacidade de entrar no livro as vezes sai prejudicada”.

O mediador Godoy pergunta ao segundo convidado se ele participou da transformação do mercado editorial ou já embarcou nele após o início do processo. André Conti presenciou a transição do mercado, o começo da internet no Brasil, e conta também que o mundo editorial trabalhava em um ritmo mais lento, em comparação a média atual mensal de cinco livros publicados pela Companhia das Letras, onde trabalha.

De acordo com ele, a real interferência da internet ocorreu há aproximados oito anos, e um exemplo dela é a recepção do livro. “Duas páginas na Veja tinham grande peso”, diz André, que viu a curva de vendas de livros permanecer igual mesmo tendo ‘suado’ para ver resenhas publicadas em veículos de grande alcance. Mas demonstra otimismo ao falar do diálogo virtual estabelecido pelos leitores, através de comentários e resenhas em blogs ou sites específicos – como disse, viu que o livro estava ‘borbulhando’ nas palavras positivas dos leitores.

Omar questiona os convidados sobre o que é explicado a partir do índice de leitura. “A existência de livros e bibliotecas não tem significado aumento no número de leitores”, afirma Heloisa Jahn. Seu colega de debate adiciona que “o número de vendas é muito imaterial, o que você tem é leitor, e tem que cultivar”.


E qual o impacto de eventos literários, com suas oficinas, palestras, e sessões de autógrafos? André Conti responde que há o lado bom de permitir aos leitores o contato direto com os autores, e há também um aspecto financeiro, pois com tais eventos os autores tem um meio de viver de literatura, “ao dar a cara em todo lugar que é convidado”.

Esquina do Texto – Marcelino Freire na Semana Literária Sesc 2013

Tem que fisgar uma frase do autor, diz Marcelino Freire durante as oficinas literárias em que leciona. Os estudantes delas recebem um ‘patrono’ – um autor sobre o qual devem pesquisar obra e vida. Não era o caso naquela manhã de sexta-feira, 20 de setembro, mas o público que lotou o auditório da Semana Literária Sesc 2013 pôde aprender sobre Manoel Carlos Karam, patrono do citado evento, apenas ouvindo Freire na palestra “Karam, o irônico mordaz”.

Freire está sentado em uma poltrona branca, e a sua direita está uma minúscula mesa de vidro, três livros empilhados e um copo plástico com água sobre ela. Ele conta que escolhe autores de “uma seara de quem escolheu a literatura como paixão, como ofício máximo e maldição”, por vezes escritores cuja produção foi pouco conhecida – entre eles Jamil Snege, que apresentou a cidade para o palestrante em décadas passadas.

Marcelino conta que durante uma dessas oficinas, uma aluna perguntou “mas pode escrever dessa maneira?” ao estudar um autor. Pode – e comenta sobre a mistura que Manoel Carlos Karam, fazia entre teatro, quadrinhos, rádio e outras mídias. Ele pega um dos livros da mesa, lê uma frase: “arranquei do dicionário a palavra paixão, carrego comigo”. “Karam era movido por isso”, como se a escrita fosse a única coisa que pudesse fazer, explica Freire. Um ofício exercido as cegas, como se a escrita se fizesse por si.

“O texto está cheio de esquinas, você pode encontrar um pente ou um cadáver. Você dobra a esquina, e não sabe o que tem no próximo parágrafo”. Não dá para enquadrar a literatura do Karam, você pensa uma coisa e é outra, diz Marcelino. Ele menciona uma entrevista em que perguntaram ao homenageado autor um resumo do livro Cebola, a qual respondeu ‘se eu pudesse resumir o livro em três linhas não teria escrito 250 páginas’.

Com um segundo livro em mãos, Marcelino busca uma frase noutra esquina da produção textual.  “A felicidade não bate a porta. A felicidade deixa um bilhete debaixo da porta. O bilhete dizia foda-se”, do Impostor no Baile de Máscaras. Outra leitura, desta vez do Fontes Murmurantes: “temporada de verão, a maré subiu – o mar, na tentativa de pegar os peixes que almoçamos”.

O palestrante conta uma tática que recomenda aos alunos de suas oficinas: “joga um pitbull do sétimo andar. Vai ter que fazer com que a história gire em torno disso, no mínimo vai desbloquear.” Está com bloqueio? “Seus personagens não saem para tomar café?”, e volta a falar de Karam, que se descrevia mais como leitor do que escritor, dono de uma literatura sem estilo. E compara Manoel Carlos Karam a Machado de Assis – tudo ao mesmo tempo agora. “Machado de Assis parava a história para dizer ‘vou ali e já volto’, matava personagem com anúncio de velório, só não fazia colagem como o Valêncio Xavier porque não podia a época”.

Marcelino Freire pega um livro, procura uma página específica, mas enquanto não a encontra, brinca, olha para o copo plástico d’água ao lado dos livros e diz que a palestra é um patrocínio de Serra da Graciosa. “O Karam faria isso”, diz, entre risos seus e da plateia. O grande escritor não escreve, compõe uma história, conta Freire, enfatizando a necessidade de muita paixão prezando linguagem e humor para mostrar o quanto ridículo nós somos.


“O leitor é coautor dos livros do Manoel Carlos Karam, pode começar a ler em qualquer parte”, conta Freire. O patrono via a literatura como um jogo, como se fosse mais fácil participar e divertir. E o leitor é coautor dessa jogatina que vai de esquina a outra desenfreadamente.

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Gramado para Interpretação – Marcelo Backes e José Roberto Torero na Semana Literária Sesc 2013

O juiz acena, e os dois jogadores aguardam qual deles vai receber a bola. Não era um jogo, apenas um treino em forma de mesa-redonda intitulada “Gol de Letra’, inclusa na Semana Literária Sesc 2013, simultânea a XI Feira Universitária UFPR. Ao invés de um juiz ou um técnico, um mediador – Paulo Krauss, que lança a pergunta aos dois convocados – como entraram no futebol?

“Só torço para dois times: o Internacional e para quem estiver jogando contra o Grêmio”, responde Marcelo Backes. Nascido em Campinas das Missões, interior do Rio Grande do Sul, conta que não havia muito a fazer na cidade, e que sua relação com o futebol é natural, tanto que parece desmentir o que diz do próprio vínculo com o esporte. Backes conta que seu elo com o futebol sempre foi de sofrimento, nunca jogou muito bem, mas ouviu repetidas vezes ‘você não joga nada’ do pai.

Bola, ou vez, para o parceiro do treino-debate, José Roberto Torero. “Nunca liguei muito para futebol até meus nove anos”, mas até ser levado pelo pai a um jogo específico- o pai lhe disse “você tem que ir”. Em determinado momento da partida, um jogador cruzou os braços, e gesticulou como quem se despede. Torero conta que o pai era durão, mas estava chorando – por que aquele jogador ia parar de jogar? E via a mesma reação em outros no estádio, e aquela despedida de Pelé em 1973 o fez querer entender o que o futebol que faz as pessoas chorarem. “Tristezas e alegrias renovadas, o futebol parece muito com a vida”.

O técnico-mediador Krauss pergunta aos escritores como se deu o elo entre literatura e futebol. Torero responde que foi chamado para escrever o livro do Santos, e também para escrever crônicas esportivas. Mas a despeito da presença do esporte em sua escrita, ele explica “não sou apaixonado por futebol, não é o assunto mais importante, é só o mais importante das coisas menos importantes”.

Backes usou o futebol como pano de fundo em seu livro O Último Minuto, no qual um treinador aposentado conta a um seminarista o porquê do esporte em sua vida. Aproveitando a jogada de seu colega de debate, conta que o futebol, combinado na escrita com outros assuntos, pode ser um bom veículo para falar de outros temas.

Paulo Krauss indaga a José Roberto Torero: considerando que há muita crônica esportiva no Brasil, por que não há uma literatura mais ‘aprofundada’ sobre ele? “Não é grande assunto na literatura”, responde o convidado, que cita alguns motivos – um deles é o que considera “um divórcio entre futebol e intelectualidade”. O esporte possuía, em campeonatos passados, um público majoritariamente elitista, e gradativamente tornou-se acessível e praticado pelas camadas populares. Outro fator foi a seleção brasileira, negativamente associada a ditadura no país, como se fosse propaganda desta. Torero adiciona uma comparação da partida de futebol ao cinema, com 90 minutos de duração, protagonistas e ocasionais heróis, marco na história – no caso o intervalo, como se o esporte fosse uma narrativa em si.

E Marcelo Backes, sente falta de mais futebol na literatura? “Nunca pensei nas motivações”, responde, argumentando que poucos escritores têm experiências como jogadores ou técnicos de futebol, fundamental para escrever sobre o tema. Quanto a crônica, a considera uma observação de maneira distante, como se fosse outra estratégia para relatar uma partida.


Uma última pergunta do mediador – que observações fazem do mercado de livros relacionados ao esporte? Torero conta que há muitos títulos com tiragens pequenas, mal ultrapassando cinco mil exemplares, para atender pequenas demandas. “Vou escrevendo, não cogito leitores” conta Marcelo Backes, “uma vez o livro pronto, não há o que fazer”. Objetivo, aponta o futebol como uma metáfora, uma gramado no qual enxerga uma “tentativa de interpretar o momento pelo qual o Brasil está passando”. 

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Bisbilhotando Significados – Marina Colasanti e Ernani Ssó na Semana Literária Sesc 2013

“A criança vê o adulto com mistério”, fala Mariana Sanchez, mediadora da mesa redonda batizada Bisbilhotando Outros Mundos, realizada manhã de 19 de setembro. A frase foi originalmente pronunciada em debate do dia anterior, ambos inseridos na Semana Literária Sesc, evento simultânea a XI Feira Universitária UFPR. A mediadora pergunta aos dois convidados qual o fascínio da infância sobre eles.

“Tenho dois livros sobre bruxas, foram os que mais gostei de escrever, porque tinha medo de bruxas quando era criança”, conta Ernani Ssó. “O livro para criança não funciona se o autor não lembra como foi enquanto criança, funciona quando o autor tem uma ligação forte com a própria infância”. O escritor também conta que o pai lhe contava histórias na infância, e as infantis que escreveu foram um conjunto de saudade daquelas e uma dose de vingança das bruxas.

“Não vejo mistério nenhum na infância, a vida é mistério em qualquer idade”, revela Marina Colasanti. Quando escreveu livros infantis, ficou surpresa com a nitidez das próprias sensações deste período específico. “Nunca tive intenção de escrever para crianças. Quero dar ao leitor o que ele não quer, ou o que não sabe que quer. Meus temas são o que me sinto obrigada a escrever, são uma ‘garantia’ da minha sinceridade mais intensa”.

Sanchez pergunta a Ernani sobre uma experiência em que um de seus livros foi usado em leituras escolares. “Foi interessante, o Contos de Morte Morrida está sendo recomendado para crianças de oito anos, e a criança distingue bem a realidade da fantasia”. A leitura desta obra por dois alunos foi notada por um bibliotecária e uma professora, posteriormente envolvendo mais pessoas dentro da escola.

E quanto a Marina, autora de contos de fada, qual a diferença destes para a literatura dita infantil? “A coisa mais difícil da literatura é a qualidade, os contos de fada são um gênero com pouca produção e difíceis porque são feitos sem a razão. Um conto de fada ‘construído’ é chato, só funciona quando surpreende o autor, se não me surpreender não serve. Aconteceu assim na minha cabeça, é assim que vai”.

A mediadora pergunta a ambos como apresentar o mundo da leitura as crianças de forma natural, sem forçar o desenvolvimento a prática. Ernani Ssó menciona uma entrevista em que Fernanda Savata afirmou que sem dúvida o que faz entrar para a leitura é paixão ao contar um livro para alguém, e o hábito deve ser transmitido por meio disto. “As crianças se afastam dos livros obrigatórios, o elogio da leitura é quase igual ao elogio da alface: o pai diz que alface é boa mas não come. O pai não lê, o professor não lê, e se a criança não gostar não adianta. As escolas deveriam ter alguma forma de contagiar as crianças com leitura. O professor não devia impor, deveria ser guia. E tem que descobrir um livro que emocione, não é porque um autor é clássico que deve ser lido”.

“Antes falávamos entre nós escritores, mas estamos falando disso publicamente há trinta anos. Nem todo escritor está interessado em leitura”, conta Colasanti. Ela compara a transmissão da leitura a um transplante de um órgão vital. “Tem que fidelizar o leitor, porque a criança para de ler quando entra na adolescência”.

Ernani emenda que não se preocupa com o que a criança vai entender, mas essa frase está longe da indiferença. “Entender um mito racionalmente é um pouco difícil”. Exemplifica: gosta da cena da Rapunzel na janela do quarto, jogando os cabelos para baixo, a espera do resgate. “Uma visão realista disso não faz sentido. As imagens ficam com a gente, o significado varia com o leitor. Mensagem é com o correio, não com a literatura”.

Mariana Sanchez pergunta aos convidados como foi a experiência deles com a tradução. “Tentei  ler Dom Quixote em espanhol, mesmo com dicionário não consegui”, responde Ssó. Insatisfeito com as traduções que encontrou, propôs o trabalho, que foi aceito pela Companhia das Letras. “Eu mesmo queria ler o livro tranquilamente”.

Marina Colasanti trabalhou na tradução de Pinóquio, e reclamou que as versões adaptadas traíram a original – em especial a animada feita pela Disney. “O original tinha roupa de papel estampado, sapato de casca de árvore, miolo de pão no chapéu”. Para ela, o significado não deve ser alterado. 

Além da Literatura – Seminário na Semana Literária Sesc 2013

Noite de 18 de setembro, quarta-feira. A Semana Literária Sesc 2013 prossegue, simultânea a XI Feira Universitária UFPR. No auditório montado a frente das escadarias do campus central da UFPR, pessoas que venceram o gelado clima da capital acomodavam-se em seus lugares, aguardando os ocupantes das quatro poltronas brancas colocadas em frente ao público começassem o seminário.

Flavio Stein, mediador, apresenta os convidados e o tema, O Desafio de Construir Leitores. “O leitor se constrói na infância, entre a casa e a escola”, explica, e pergunta aos três palestrantes, ambos sentados em poltronas a sua direita, como se dá a construção do leitor.

“A escola privilegia modelo de decodificação, os alunos são incentivados a ler para encontrar respostas nos textos e não a ler de fato”, afirma a professora Lucia Cheren. Para ela a leitura é mais ampla do que dessa busca: “ler é buscar ponto de vista de quem organiza, a informação nunca é neutra. É preciso não confundir leitura com simplificação”. Seu raciocínio, descrito a partir de um texto por ela escrito e segurado em mãos, vai além da pura leitura; de acordo com ela devemos discutir “como tornar-se letrado, não apenas alfabetizado. Fala-se mais do texto literário, que aproxima-se da aventura, mas não de formação de ponto de vista”.

Cheren prossegue em sua leitura. “Há professores que percebem problemas graves de leitura, não há concentração possível”, ela questiona como é a casa deste estudante- há espaço para o estudo? O bairro onde mora é seguro? Há outras opções de atividade além da leitura? A professora cita um dado do Retratos da Leitura 2011- “a mãe em geral é mais leitora que o pai”. Somados, tais itens influenciam a formação do estudante, e acrescenta que há casos em que o indivíduo é leitor enquanto estudante escolar, mas, sob as condições mencionadas, “esse leitor escolar tem grandes chances de se tornar um não –leitor”.

Flavio Stein passa a vez para Maria Antonieta Cunha, doutora em Letras, indaga-a sobre programas de leitura. “Sob qualquer ponto de vista, a leitura é um bem que deve ser levado a todos. E como todo bem comum, deve ser tratado como política pública” ela afirma. Entre o que chama de conquista através da leitura, avalia não apenas a ampliação da capacidade de pensar, mas também o desenvolvimento pessoal. Assim como sua colega ministrante Cheren, Maria Antonieta se vale de estatística: “em 2007, o principal incentivador era a mãe; em 2011, era o professor”. A despeito disso, ela enfatiza: “a escola está falhando na formação de leitores. Eles não são formados pela biblioteca da escola”.

O mediador passa a palavra ao terceiro convidado, o escritor Ronaldo Correia de Brito, e pergunta seu parecer sobre esta questão. “Estou aqui no lugar de leitor, sou um escritor que espera chance de apenas ler e entrar nos livros”, se apresenta, a leveza quase em contraste contraponto ao teor acadêmico das outras convidadas. “Minha experiência me tornou alguém muito ligado a livros, é quase um vício”. Antes de responder diretamente a pergunta de Stein, Correia fala que houve uma perda da narrativa oral, e junto com ela a da tradição mítica. “O homem necessita narrar-se, nossas sociedades ingressaram na pós-modernidade, mas perderam tradição mítica. Houve um corte sem volta na forma de afirmar identidade pela narrativa oral”. Brito cita um exemplo de uma sociedade inglesa, na qual aconteceu uma divisão entre os habitantes. O primeiro grupo constituía-se por uma cultura inglesa culta e letrada, o segundo por uma cultura tribal inculta narradora. Os daquele informavam-se isoladamente, enquanto os deste relacionavam-se e retransmitiam o conhecimento entre si. Correia não reclama da considerada cultura letrada, mas não a considerada excludente da tradição oral.

Stein comenta sobre um retorno a oralidade, presente na produção do escritor. Seria “para permitir que o leitor ouça a própria voz”?  Ronaldo Correia menciona a cultura zen budista, na qual os artistas nunca assinam suas obras - elas existem no instante em que alguém as vê. “Um livro fechado em uma biblioteca é um obra morta, só ganha vida através de quem o lê”. Quanto a voz, a partir do que ele afirma pode-se interpretar que está ligada a formação. “Nossa formação é tão fragmentada quanto um achado de arqueólogo. Não pense que você é um eu que cresceu, e sim algo que se formou a partir de fragmentos”. E insiste na oralidade, pois considera que os exercícios de fala, como chamou, podem “recuperar a sociedade”.

Eis que Maria Antonieta Cunha complementa, contando um escritor que conhecera: “tornou-se escritor ouvindo narrativas da avó, que era negra, vinha da senzala, e 100% analfabeta”. Não exclui a oralidade, mas ressalta que há diferenças entre alfabetizar e formar cabeças, ressaltando que se devem buscar “dados além da pura alfabetização”.

“E o que a gente faz com este público imenso adulto que não lê?”, diz o mediador. Lucia Cheren conta que “as universidades se elitizaram, se relacionam com as escolas”. Além de considerar que estes dois meios devem interagir, diz serem importantes “novas estratégias para que a leitura e a escrita tenham significado”. “Sabemos mais sobre alfabetização do que sobre formar leitores para a vida inteira”, adiciona Maria Antonieta Cunha. “O mistério da criação do leitor é absolutamente individual, não há caminhos que funcionem para todos”, completa. Ronaldo Correia de Brito diz que “é preciso construir além da literatura”. 

Compreensão Cruzada – Lourival Holanda e Marcelo Coelho na Semana Literária Sesc 2013

Quarta-feira, 18 de setembro em Curitiba. A Semana Literária Sesc, ocorrendo simultaneamente a XI Feira Universitária UFPR, abriu as 9 horas, e gradativamente mais pessoas adentraram a tenda montada na Praça Santos Andrade. Funcionários dos estandes de livrarias e editoras ajeitam livros nos balcões, obras literárias lado a lado com grossos volumes acadêmicos.

No auditório, montado na escadaria do campus central da UFPR, mais uma mesa-redonda começa. O primeiro a falar é Rogério Pereira, mediador, que apresenta o tema “Leituras Cruzadas”, comentando sobre leituras de materiais relacionados à literatura ou não, o que ocasiona uma divisão entre leitores ‘literários’ e ‘pragmáticos’, que leem material essencialmente técnico. “O que é decisivo na construção do leitor?” questiona aos dois convidados.

“Geralmente se fala sobre o que transcende a literatura, mas quero pensar o oposto, no que a antecede”, diz Lourival Holanda. Para ele, na infância se inicia a percepção não apenas da leitura, mas da vida em si. “Graciliano Ramos escreveu Infância e só depois os outros livros, como se quisesse se livrar disto. A criança vê o adulto como mistério, mas o adulto também vê a criança com mistério”. Em tom de deslumbramento, ele afirma que em meio a esta inversão de papéis há ocasiões em que “a gente rouba da infância o que precisa para escrever”.

Marcelo Coelho, segundo convidado deste debate, aborda os livros considerados infantis de maneira crítica: “tem livro que não é para ler, é para assoprar, ou virar boia, parece brinquedo, e a ilustração é tudo”. Coelho conta algo que desaprova. “Muitos autores de livro infantil falam em tom de voz de criança quando estão falando com criança, como se subestimassem ela”. Igualmente crítico se mostra ao discorrer sobre o encontro leitor-autor: “não é a função do escritor encontrar seu leitor, se vai encontrar leitor não está fazendo literatura. Fazer literário é importante para si, a primeira pessoa com quem o autor se comunica é a si mesmo, o resto é mercado. Mercado de professor que lê livro infantil e empurra na criança, empurro-terapia literária”.

Mas “como o leitor vai encontrar a leitura?” questiona o mediador Rogério Pereira. “A escola deve estar preocupada com a formação”, adverte Lourival Holanda. De acordo com ele, o que a criança realmente aprende nós não sabemos. Emenda: “é preciso desenvolver o imaginário da criança, a autonomia de pensamento desde cedo. A escola ainda está vinculada a formação e consolação”.

“Existe gente que gosta de ler”, afirma Marcelo Coelho, “mas para muitas pessoas ler não é fundamental”. A frase poderia soar pessimista, mas foi pronunciada naturalmente, sem lamento. Ele conta uma história pessoal, diz que quando estava em idade escolar recebia muitos estímulos para jogar futebol, mas não conseguia gostar do esporte – e para ele a situação é semelhante em relação a leitura. “O problema é preencher a imaginação da criança, nenhuma criança nasce com imaginação fulgurante”.

“Não é ser ou não essencial, depende do que se entende por leitura”, retruca Holanda. Ele relaciona escrita e leitura à civilização – “Não existiria o mundo se não fosse Ilíada, Odisseia, Bíblia, Alcorão”, afirma, pois considera a leitura fundamental para decodificar os acontecimentos do mundo. Um processo que deve ser acompanhado pelo que Holanda chama deslumbramento, como ‘reverência’ a descoberta por meio da leitura.

Rogério Pereira indaga sobre esta capacidade de interpretar e questionar o mundo, dilatada pela leitura. “Talvez quem não goste de ler não se sinta bem frente ao arsenal de conhecimento da leitura”, responde Marcelo Coelho. Ele argumenta que alguns podem ter uma relação instrumental com a leitura, preferindo informações técnicas ao invés de obras literárias, as quais atribui uma possibilidade extra: “alguns preferem entender como uma coisa funciona do que entender como uma pessoa funciona, faz parte da variedade humana”. Quanto a Lourival Holanda, considera a leitura importante para desenvolver o potencial do imaginário, “a literatura faz [isso] melhor que outros meios. A literatura não tem discurso assertivo, não tem certezas, que nos envenenam”.

E a leitura em períodos específicos ou cronológicos, existe? É com tal indagação que o mediador prossegue. O primeiro a responder é Coelho, dizendo que há quem tenha “um pouco de medo de ler um livro realmente bom, um Fausto de Goethe ou a Divina Comédia de Dante Alighieri. Tem livros que caem na mão [do indivíduo] com 18 anos e parece a idade ideal”. Uma vez vencido tal medo, o leitor conhece o porquê de determinada obra manter a relevância.

Seu colega Lourival Holanda vê de outro ângulo. Chama parcela dos leitores de ‘utilitários’, por desejarem o que chama de domínio de área, não em tom crítico, mas por ter, aparentemente, outro foco. “Na literatura não há domínio, literatura é ‘despossessão’. A compreensão não nos cabe”. Despossessão através da literatura, e desenvolvimento do imaginário por meio dela, podem ser resumidos por uma palavra do otimista Lourival: transubstanciação. “Isso pode começar na infância, literatura é aposta”.


Marcelo Coelho diz que “o não entender faz parte. As vezes a literatura faz a gente reconhecer algo que sabia, mas não sabia que sabia. Explica, mas ultrapassa a capacidade de compreensão”. Mas não impede a aproximação. 

Cadeira puxada para Conversa - Luís Henrique Pellanda e Xico Sá na Semana Literária Sesc 2013

“Qual é a definição da crônica?”, indaga Luiz Rebinski, mediador, aos dois cronistas que estão cada um a sua direita e esquerda. A noite de 17 de setembro de 2013, após dois dias de pesada chuva em Curitiba, abrigou uma mesa-redonda sobre a Crônica Nossa de Cada Dia, durante a Semana Literária Sesc, simultânea a XI Feira Universitária UFPR. Mas a primeira resposta ouvida pelo público que lotou o auditório não foi exatamente uma definição.

“É bom que não saibam, que a gente vai enrolando”, diz bem-humoradamente Xico Sá. “Quase um mix entre jornal e literatura, colada no dia-a-dia, [enquanto] o conto tem sua cota de absurdo e ficção”. A crônica brasileira é coloquial, diz ele, como se fosse uma cadeira puxada para a conversa.

“Não dá para analisar definição, é um gênero muito jovem”, fala Luís Henrique Pellanda. “A crônica deve muito a imprensa”, o cronista menciona João do Rio e Olavo Bilac como influentes, além de Rubem Braga, um “repórter que não saiba ser repórter” e escrevia crônicas.

“Escutei que a crônica absorve elementos da ficção, em especial do conto”, diz Rebinski. Xico Sá complementa que a crônica aborda toda temática, de comportamento a tragicomédia, como se houvesse “tema por temporada”, de acordo com os assuntos em voga. É uma mudança do gênero, de acordo com Sá. “Natural que a temática se diversifique”, afirma Pellanda, ao comentar que o gênero ganhou popularidade com a internet.

Mencionando uma coluna de Michel Laub, Luiz Rebinski comenta sobre conto ser mais fácil de escrever do que o romance – e pergunta aos cronistas o que pensam. “Eu fazia exercício de ficção no conto, fiz romance para matar a maldição do cronista”, conta Sá, que transita nas três categorias. “O maior sacrifício foi limpar o cronista [da ficção]”, e Sá contou ter perdido a vergonha de escrever prosa com seu livro Big Jato, embora tivesse se consolidado noutra foram de escrita.

“Quando vem o romance?” pergunta Rebinski a Pellanda. Este cita Elvira Vigna, que em mesa redonda do mesmo evento afirmou “escrevo romance porque sou burra”. “É um vício de conversa perguntar quando vem o romance”, responde. Quanto a suposta facilidade em escrever determinado gênero, não tem relação com classificação em si, pois “depende do comprometimento”.

Pellanda conta uma história de Ignácio de Loyola Brandão, que certa vez mandou uma crônica para uma antologia organizada por uma companhia de marketing. Porém, o material foi recusado, e Loyola recebeu como justificativa do diretor da empresa ‘sua crônica tem diálogo, conto não tem diálogo’, e o mencionado escritor substituiu travessões por aspas para que seu material fosse aceito. Definição de conto e crônica feira por diretor de marketing, relata Luís Pellanda, e afirma que “o Brasil vive um momento de mercado, gênero não é importante para o leitor”.

Luiz Rebinski questiona seu xará sobre os temas de suas crônicas, onde “tem muita desgraceira”.  Este acha difícil falar de temas, “a paternidade serviu de filtro”, pois enquanto saía para passear com a filha, tornou-se mais atento ao que via no centro da cidade.

Quanto a Xico Sá, São Paulo foi ambiente de parte de sua produção, e posteriormente o Rio de Janeiro. “O lugar está na crônica, e o leitor reconhece. É legal levar um lugar para quem lê”. Seu colega de gênero adiciona: “se escrevo nomeando os lugares, qualquer absurdo parece verdadeiro.” Sá conta que a mudança de cidade e tema enriquece a escrita, na busca “além da novidade da esquina”.


Uma novidade que pode vir em uma caminhada, reparando nos detalhes eu compõem a cidade, ou ao ter de prestar atenção no ambiente. Como disse Xico Sá, “a andança é fundamental para o cronista”.

A Força do Escritor: Elvira Vigna e Vilma Arêas na Semana Literária Sesc 2013

Terça-feira, 17 de setembro de 2013. Chovia torrencialmente no centro de Curitiba, mas no segundo dia da Semana Literária do Sesc, acontecimento simultâneo a XI Feira Universitária UFPR, uma mesa-redonda em particular foi mais forte que o clima.

Embora não seja a melhor palavra para descrever. Irinêo Netto, mediador da mesa-redonda em questão, apresenta o tema ‘Força do Escritor’, pontuando a “transformação social que a leitura faz no Brasil; interferência da ficção no dia-a-dia das pessoas”, e pergunta às convidadas o que consideram disto.

“Minha primeira reação foi achar que essas perguntas não cabiam, são antigas”, dispara Elvira Vigna. “A arte é sinônimo de transformação, ou você se permite participar de uma experiência estética ou você não a tem”. Vigna menciona Jack Kerouac, por julgar que houve ‘atitude artística’ a partir de modelos lançados pela produção deste- apesar de que, segundo a escritora, hoje “não tem mais a figura mitificada do escritor”. Mas retornando diretamente a pergunta do mediador, ela enfatiza: “sua pergunta não tem sentido”. Irinêo Netto reage fazendo de conta que esconde as folhas com as perguntas a serem feitas atrás do sofá, mas logo as põe de volta as mãos. Vigna mantém o tom crítico da resposta. “Aí você fala do Brasil. Qual a sua intenção com a literatura”, ela questiona, se seria escrever apenas para o que chama ‘elite culta’.

Em verve igualmente crítica, mas em direção diferente da primeira convidada, a também escritora Vilma Arêas diz concordar parcialmente daquela. “É muito difícil entender hoje, a mudança de velocidade do tempo social”. Para ela, vivemos em uma era de “liberdade controladíssima, posso fazer uma pirueta de acordo com quem sou”. A calma afirmação dela encontra-se, parcialmente, com a de sua colega quando Vilma diz que devemos entender o valor da arte, e emenda: “muitas vezes a gente escreve para se salvar”. Após citar Mario de Andrade, que escreveu que o importante é ‘sofrer bem’, Arêas compara o ato de escrever ao de pintar, no sentido de praticar ambas para aprender. “Precisamos de formas organizadas para sermos menos malucos”, brinca ela. Vilma Arêas comenta sobre pedidos das editoras de se produzir um livro por ano, para manter a visibilidade do escritor, o que ela recusa. “O folhetim colocou a literatura na esteira de montagem”, explica, “o bom é que democratiza, o ruim é que automatiza”.

Irinêo Netto, mediador do debate, retoma: se essas perguntas são antigas, por que se discute sobre literatura nesses termos, por que deste falar de literatura como se ela tornasse as pessoas melhores? O que não é exatamente verdade, ele acrescenta.

Elvira Vigna é a primeira. Ela compara tal discussão com personagem de desenho animado, que começa a correr, passa da beira do penhasco, fica poucos segundos no ar e só então percebe que não há chão embaixo de seus pés, e enfim cai. Ela nomeia isso de “obsessão pela tagarelice”. E comenta, novamente, o que tinha chamado de elite culta. “Literatura representa quem faz literatura”. Exemplifica: considera que existe um ambiente culto versus inculto, pois vê influência da primeira camada com suas temáticas e personagens, excluindo a segunda camada. E dá-lhe outra crítica: “se a intenção é incluir, é porque está feio”.

“Há algo na arte que escapa ao fazedor”, afirma Vilma Areas. Netto começa a falar sobre a internet, mas especificamente sobre usuários que buscam na rede a confirmação do que já sabem, de como colunistas podem ser estilhaçados redes sociais, porém Arêas intervém. “Mídia não vive sem arte, e vice-versa, é um casamento complexo”, e também diz que arte é feita de forma lenta, enquanto o ritmo social ‘força’ uma leitura rápida. “Discordo”, fala Vigna, antes que o mediador continue, “acho que a gente está confundindo sujeito com predicado”. Sobrea internet, Vigna relaciona a literatura a internet pela possibilidade de escrita e publicação, a “experiência estética a qualquer momento”, e manifesta opinião contrária a de Arêas: “a internet não é controlável, a arte não é vendável”.

Irinêo Netto argumenta: “a internet não é controlável, mas é monitorada”, mas antes que Vilma Arêas prosseguisse a conversa para as artes, sua colega involuntariamente provoca risos na plateia: “nós fomos escolhidas para um tema chato e por termos cabelos”. O mediador retoma, questiona ambas escritoras : por que um romance?

Elvira Vigna afirma que “escrevo romance porque sou burra. O cara do conto já sabe o que quer”, como se explorasse melhor as possibilidades do gênero. “Escrevo para não ficar maluca, consigo organização através da escrita, pois hoje tudo leva a desconcentração”, responde Vilma Arêas, que considera a escrita uma “necessidade humana”.  Cada uma a sua forma, descreveram experiências de forças incalculáveis.

Batalhas pela Leitura – Affonso Romano de Sant’Anna na Semana Literária Sesc 2013

“Acho que fui convidado por uma questão de ordem alfabética”, declara Affonso Romano de Sant’Anna, ministrante da palestra cujo nome serve de bússola a muitas das mesas-redondas por vir: “Cadê o Leitor”. Assim ele iniciou a primeira palestra da Semana Literária Sesc, realizada simultaneamente com a XI Feira Universitária do Livro, de 16 a 21 de setembro de 2013, em Curitiba/PR.

Sant’ Anna comenta que tinha vindo a capital paranaense em décadas passadas, mas “ninguém se lembra dos anos 70, quando Curitiba começou a ser inventada.” Entre as invenções que compõem a cidade, esta a estrutura física do auditório da citada feira: na Praça Santos Andrade, em frente ao campus central da UFPR foi montada uma tenda, ocupando parte da praça, na qual foram colocados estandes de livrarias e editoras, além do auditório onde ocorreu esta palestra.

Distando dois passos do público, que a despeito da torrencial chuva que desabava naquela noite de 16 de setembro lotou o auditório, Romano adverte: “Vou falar coisas estranhas”. “Todo mundo sabe o que é uma biblioteca, um leitor, o que é leitura. Só tem um detalhe- sabe mas não sabe. Vamos ajudar a desmobilizar esses conceitos”. O raciocínio ‘desmobilizante’ é exposto por meio de algumas histórias que o escritor conta.

O construtor de Brasília, quando planejou a estrutura junto com Niemeyer, foi questionado o porque de não existir biblioteca na planta desta cidade. Ouviu como resposta ‘esse negócio de biblioteca pública nunca deu certo no Brasil’. O palestrante relata uma segunda história, do início da década de 90, quando foi presidente da Biblioteca Nacional. Em avaliação de projetos relacionados a esta instituição, foi informado de que a leitura não é problema do Ministério da Cultura, e sim do Ministério da Educação.

Para Affonso Romano de Sant’Anna, qualquer espaço público pode ser ocupado pela leitura. Entre os projetos de seu mandato na Biblioteca Nacional, estão a leitura em hospitais, presídios e um trem-biblioteca, iniciativas nas quais os livros eram levados a possíveis leitores, independente de escolaridade ou moradia.

Romano cita um editor de grande livraria, que declarou em entrevista “o problema do Brasil é que produz livros demais”. “Temos que rever o conceito de livraria, que livraria virou outra coisa”, afirma, descontente; “as principais editoras pagam para ter livro exposto na melhor mesa. As livrarias passam por uma transformação muito grande, esse espaço é dinheiro”.

Uma impressão possível sobre as falas de Sant’Anna é de que sua indignação vem de um misto de descontentamentos tanto do que ele presenciou, como as mencionadas histórias, quanto do que estudou. Como se o Brasil pudesse fazer mais pela leitura.

“Em 1917, Monteiro Lobato trabalhou no Estadão, e foi pesquisar sobre o Saci. Lobato começou a colher versões do Saci Pererê, e escreveu o livro dele, que se tornou best-seller para a época”. Apesar dos livros terem sido editados por empresas de fora do Brasil, Sant’Anna comenta com entusiasmo sobre esta produção de Monteiro Lobato porque, a seus olhos, este “conseguiu que livros fossem vendidos em qualquer ponto de leitura; contatou formadores de opinião em Natal, em Ceará, outros lugares, sujeitos que funcionassem como ponte”.

Considerando os projetos citados anteriormente, cujos objetivos são levar a leitura e o livro aos leitores, essa ponte foi criada por outro sujeito citado por Sant’Anna. Ele menciona Paulo Freyre e seu método de alfabetização, constituído por usar palavras do cotidiano dos alunos nas aulas, de forma a aproximá-los da leitura.

“Leitura é uma coisa complexa”, afirma Affonso Romano. “Estamos batalhando para que hajam leitores”. Tanto a batalha quanto a complexidade da leitura são mostradas em mais uma história que o autor conta –desta vez, uma do programa de leitura nos hospitais.

Em um hospital, um paciente que estava internado no leito 14 recebeu um livro durante o tratamento. Após alguns dias de medicação, o doutor por ele responsável dera-lhe alta, pois considerava-o curado. Porém, o paciente do leito 14 não queria ir para casa porque não terminou de ler. Ao comentar esse fato com outros colegas, o doutor foi informado de que o enfermo era analfabeto. Em dúvida, foi perguntar ao paciente, que confirmou. Sant’Anna finaliza esta história com a frase do paciente, e diz, exagerando um pouco, que Guimarães Rosa teria pago por ela: o doente do leito 16 lê, e eu leio na leitura dele.

“Todo mundo lê, tudo é leitura e interpretação”, explica Romano, otimista. No início da palestra, ele afirmou que alguns conceitos devem ser revistos. Seria a leitura uma ponte, aproveitando-se das histórias que o autor contou? É uma interpretação – entre muitas possíveis.